Procissão cultural encena lendas do folclore popular nas ruas de Mariana

Nem só de religiosidade se faz a Semana Santa em Mariana (MG). Na noite de ontem (25), quando se celebrou a Sexta-Feira da Paixão, um grupo de 60 pessoas saiu às ruas para encenar lendas do folclore popular da cidade. Acompanhada sempre por olhares de uma centena de curiosos, a Procissão das Almas carrega uma tradição de aproximadamente 35 anos.

O cortejo é organizado pelo Movimento Renovador, uma iniciativa sociocultural independente cujo objetivo é contribuir para a preservação do patrimônio material e imaterial da Mariana. “Nós realizamos pesquisas sobre os elementos tradicionais e folclóricos da sabedoria popular”, explica a integrante do movimento e uma das coordenadoras Procissão das Almas, Hebe Maria Rola Santos.

Aos 84 anos, Hebe é também professora de literatura emérita da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Fascinada por histórias e contos populares, ela conta casos curiosas como a de um homem com dificuldades de locomoção que, após sete anos participando da Procissão das Almas, apareceu sem muletas na penúltima edição. “Ele jura que foi curado pelo nosso cortejo. Vou dizer o que para ele?”.

Duas lendas

Na Procissão das Almas, as pessoas se vestem todas de branco, escondendo seus rostos sob um capuz. Elas carregam um osso e uma vela e param em frente às igrejas que possuem cemitério para entoar uma canção. No meio do grupo, um participante fantasiado de morte segue carregando uma foice, enquanto Hebe Rola incorpora um personagem que carrega um cesto cheio de penas, que são jogadas para o alto de tempos em tempos. Esses três elementos, ossos, penas e cemitérios, se remetem a duas lendas populares da cidade e uma história real.

Diz a primeira lenda que uma senhora chamada Maricota passava seus dias na janela, fiscalizando a vida alheia. Era uma fofoqueira, na linguagem popular. Como já estava com má fama devido ao seu comportamento, decidiu mudar de bairro e também alterou seus hábitos: em vez de ficar na janela durante o dia, Maricota passou a ser vigilante noturna. Como Mariana tinha toque de recolher às 21h, o objetivo dela era delatar os infratores.

Uma noite de sexta-feira santa, viu uma procissão se aproximar, mas as pessoas escondiam o rosto dentro do capuz. Ela ouvia lamúrias, som de bumbo, correntes arrastando e uma canção: “Reza mais, reza mais, reza mais uma oração; reza mais, reza mais, pra alma que morreu sem confissão”. Como ela não conseguia identificar quem estava ali, começou a ficar intrigada sobre o cortejo que até então desconhecia.

De repente, um dos integrantes veio em sua direção dizendo que a noite é dos mortos e pediu para que ela guardasse a sua vela que mais tarde voltaria para buscar. Maricota ficou feliz por ver que finalmente alguém lhe tinha confiança. Quando a procissão voltou, a mesma figura novamente lhe procurou. Ela então foi buscar a vela, que surpreendentemente havia se transformado em um osso de perna de defunto. “O final possui mais de uma versão, sendo que em uma delas a fofoqueira morre de susto e passa a integrar anualmente a procissão dos mortos”, conta Hebe.

A segunda lenda se remete a uma senhora classificada como “barata de igreja” que é, na linguagem local, a mulher que está sempre bajulando o padre. Com a contratação de uma jovem moça para ajudar nas escrituras da paróquia, essa senhora fica muito enciumada. Ela, então, começou a espalhar o boato de que a nova funcionária era namorada do padre e, para conferir credibilidade à sua história, colocou sapatos do sacerdote sob a cama da moça.

Com o escândalo, a jovem perdeu o noivo, foi expulsa de casa pelos pais e virou andarilha. Um dia, ela retornou bem maltrapilha e bateu à porta de uma casa solicitando água. Enquanto a moradora atendia ao seu pedido, a moça caiu morta. O enterro foi organizado e toda a cidade, curiosa, compareceu para ver a falecida. Quando a “barata de igreja” chegou, o defunto sentou no caixão e disse “está aqui quem me caluniou”.

Desesperada, a senhora correu atrás do padre, que lhe repreendeu e lhe deu um castigo inusitado: recolher penas de aves em todas as casas onde há abatedouros no quintal, organizá-las em balaios, deixá-las no alto do morro e esperar que um vento forte espalhe-as por toda a cidade. Ao fim, conforme Hebe Rola, ela deveria recolher até a última pena. “Segundo a lenda, em toda sexta-feira da paixão, ela transita pelas ruas de Mariana coletando as penas”.

A Procissão das Almas faz ainda referência a uma história real, cujo personagem central é um maestro de Mariana. Ele criou o hábito, em todo o Sábado de Aleluia, de se dirigir aos cemitérios onde haviam músicos enterrados para tocar uma canção em homenagem a eles.

Morte

Embora tenha um viés cultural, a Procissão das Almas é também uma reza pelos que já se foram. Há pessoas na cidade que, pela referência aos mortos, têm medo do cortejo. É o caso do taxista Antônio Silva. “Na dúvida, prefiro evitar”, disse.

Aos 23 anos, o estudante de arquitetura Felipe D’ângelo superou o medo. Natural de Mariana, ele se vestiu de branco e integrou o cortejo pela primeira vez. “Sempre tive vontade de participar, mas desde criança eu tinha medo. Há uma mística na cidade em torno dessa procissão. Acho legal a interação que existe com as praças e as igrejas da cidade”.

Já o psicólogo Fábio Maia, de Belo Horizonte, escolheu Mariana para passar o feriado e ficou fascinado com o cortejo. “Estou achando fantástico porque ela foge do lugar-comum. Eu tenho 56 anos e nunca vi uma procissão igual na minha vida. Aliás, eu não sou religioso, então essa é a única procissão que eu seguiria”.

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